veio a chuva e alagou tudo. vejo a água a arrastar lençóis amarfanhados, cadeiras que tiveram ocupantes, copos que tiveram líquido, livros que tiveram palavras, palavras que tiveram ideias.
sou sugada pelo mar, que invade a marginal e me vem buscar. arrasta-me, sem dó, rua abaixo. já a água me entra pela garganta, pelo nariz e eu sem a mínima hipótese de me debater.
lá do alto, alguém tira fotografias com um flash que ilumina tudo até à ponte. cristo redentor, porque continuas imóvel?
.
.
será uma insónia? ou o pesadelo de todo um despertar violento, para a vida que se recria?
.
seria capaz de pegar numa agulha sem barbela e fazer uma camisola que me aquecesse. não fora a dificuldade em escolher o número da linha. a cor que se ajusta. o azul que se me enfiou garganta abaixo. o castanho que me atirou para o chão. o vermelho das feridas. tudo menos algodão, que se cola. gaze. compressas.
.
quando era criança caí muitas vezes. guardo a recordação em todas as cicatrizas dos meus joelhos. nenhuma me incomoda tanto, como aquela que tenho entre o lábio superior e o nariz.
.
até logo, Mãe!